terça-feira, 24 de junho de 2008

de cujus

É ingrato. Podemos levar uma vida honesta, bastante altruísta até, respeitadora de todos os princípios. Podemos ser uns perfeitos anormais, vingativos e hipócritas...
Garantido é que, quando falecermos, faltaremos à nossa derradeira cerimónia. Estaremos lá fisicicamente, mas não sentiremos as lágrimas das pessoas que se preocuparam connosco, o efeverscer do rancor daqueles que nos odiaram. Veja-se o caso de Miklos Fehér: era um avançado com um faro de golo pouco apurado, intermitente nos 11 titulares do Benfica, contestado quando era chamado a intervir.
A morte, contudo, parece ter transfigurado as suas características. Passou a ser um jogador com uma grande margem de evolução, muito dedicado ao clube, um cidadão íntegro e amado por todos os colegas.
A vida é mesmo ingrata. Apenas somos verdadeiramente elogiados quando as nossas capacidades sensoriais são incapazes de captar tais inflamadas exclamações. Enquanto caminhamos para a morte, apenas nos confrontam com críticas ao que fazemos e não fazemos, raramente dando crédito àquilo a que nos entregamos.
No fim, no nosso apertado leito, de cara incrivelmente pálida, emanando um odor muito próprio, todos parecem notar que nós realmente passamos pela Terra. Deixa-se de lado a indiferença (pelo menos durante a cerimónia fúnebre), põem-se os canais lacrimais a funcionar vigorosamente e partimos para a vala.
Em vida, a contenção de despesas era absolutamente gritante. Até a fome podia eventualmente apertar desde que houvesse uns quantos fundos prontos para qualquer eventualidade. Já de malas aviadas para um reino diferente, não há que olhar a custos. Flores, flores e mais flores deixadas emurchecer, velas ardendo incessantemente, caixões bem confortáveis e carinhosamente esculpidos (não vá o defunto queixar-se de torcicolos!), comissões pagas a padres, coveiros, funerárias... Até post mortem não esquecemos a ostentação. E há sempre alguém a lucrar com o nosso cruel fado.

"Eu não quero que ninguém morra, mas quero que o negócio corra...", já dizia o coveiro.

Se vivemos num mundo de contradições, por que não morrer num mundo semelhante? Afinal, é tudo uma questão de coerência.

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